quarta-feira, 26 de outubro de 2011

O sucesso fantástico do Ocupar Wall Street


O movimento Ocupar Wall Street – por enquanto é um movimento - é o acontecimento político mais importante nos Estados Unidos desde as mobilizações de 1968, das quais é descendente directo ou continuação.
Nunca saberemos com segurança porque começou nos Estados Unidos neste momento – e não três dias, três meses, três anos mais cedo ou mais tarde. As condições estavam lá: um crescente e agudo sofrimento económico não apenas para os realmente miseráveis, mas para um segmento cada vez maior de trabalhadores pobres (também conhecido como “classe média”); exagero incrível (exploração, ganância) dos 1% mais ricos da população dos EUA (“Wall Street"); o exemplo das explosões de indignação em todo o mundo (a "Primavera árabe", os indignados espanhóis, os estudantes chilenos, os sindicatos de Wisconsin, e uma longa lista de outros). Não importa realmente qual foi a faísca que ateou o fogo. O certo é que começou.
No primeiro estágio – os primeiros dias – o movimento era um punhado de audaciosos, na maioria jovens, que estavam a tentar manifestar-se. A imprensa ignorou-os totalmente. Até que alguns estúpidos capitães da polícia pensaram que um pouco de brutalidade poria fim às manifestações. Foram filmados, e o filme tornou-se viral no YouTube.
Isso trouxe-nos para o estágio dois – a publicidade. A imprensa já não podia ignorar inteiramente os manifestantes. Tentou então a condescendência. O que é que esses jovens tolos e ignorantes (e algumas mulheres mais velhas) sabiam de economia? Tinham algum programa positivo? Eram "disciplinados"? As manifestações, disseram-nos, cedo iriam fracassar. O que a imprensa e os poderes constituídos não contavam (eles nunca parecem aprender) é que o tema do protesto repercutisse amplamente e pegasse rapidamente. Cidade após cidade, começaram “ocupações” semelhantes. Começaram a aderir desempregados de 50 anos. Celebridades fizeram o mesmo. Assim como os sindicatos, incluindo nada menos que o presidente da AFL-CIO. Por esta altura, a imprensa fora dos Estados Unidos já começava a acompanhar os acontecimentos. Perguntados sobre o que queriam, os manifestantes responderam: "justiça". Mais e mais pessoas começaram a achar que essa resposta tinha sentido.
Chegámos então à terceira fase – a legitimidade. Académicos de certa reputação começaram a sugerir que o ataque a "Wall Street" tinha alguma justificação. De repente, a principal voz da respeitabilidade centrista, o The New York Times, publicou um editorial em 8 de Outubro onde afirmava que os manifestantes tinham, efectivamente, "uma mensagem clara e propostas políticas específicas" e que o movimento era "mais do que uma revolta juvenil". E o Times prosseguia: “A desigualdade extrema é a marca de uma economia desfuncional, dominada por um sector financeiro impulsionado tanto pela especulação, pela extorsão e pelo apoio estatal, quanto pelo investimento produtivo." Uma linguagem forte para o Times. O Comité da Campanha Democrata no Congresso começou então a fazer circular uma petição a pedir aos apoiantes do partido que declarassem: “Estou com os protestos Ocupar Wall Street."
O movimento tornara-se respeitável. E com a respeitabilidade veio o perigo – fase quatro. Um grande movimento de protesto que vingou enfrenta em geral duas grandes ameaças. Uma é a organização de uma contra-manifestação significativa da direita nas ruas. Eric Cantor, o líder republicano do Congresso, de linha dura (e bastante astuto) já apelou, na verdade, a que isso fosse feito. Estas contra-manifestações podem ser bastante ferozes. O movimento Ocupar Wall Street precisa estar preparado para isto e pensar numa forma de lidar ou conter essas iniciativas.
Mas a segunda e maior ameaça vem do próprio sucesso do movimento. À medida que atrai mais apoio, amplia a diversidade de pontos de vista entre os manifestantes activos. O problema aqui é, como sempre é, como evitar o Cila de ser um culto estreito que se iria perder, devido à sua base reduzida, e o Caríbdis1 de deixar de ter coerência política por ser muito amplo. Não existe uma fórmula simples para evitar qualquer destes extremos. É difícil.
Quanto ao futuro, o movimento pode ir de vento em popa. Pode ser capaz de fazer duas coisas: forçar a reestruturação de curto prazo do que o governo fará realmente para minimizar o sofrimento que as pessoas estão, obviamente, a sentir intensamente; e concretizar uma transformação de longo prazo da forma como grandes segmentos da população americana encaram a realidade da crise estrutural do capitalismo e as grandes transformações geopolíticas que estão a ocorrer, porque estamos a viver num mundo multipolar.
Mesmo que o movimento Ocupar Wall Street começasse a definhar devido ao cansaço ou à repressão, já conseguiu um enorme sucesso e vai deixar um legado duradouro, tal como as mobilizações de 1968. Os Estados Unidos mudaram, e numa direcção positiva. Como diz o ditado, “Roma não foi construída num dia.” Construir um novo e melhor sistema-mundo, um novo e melhor EUA, eis uma tarefa que exige esforço constante de sucessivas gerações. Mas um outro mundo é realmente possível (embora não inevitável). E nós podemos fazer a diferença. O Ocupar Wall Street está a fazer a diferença, uma grande diferença.
Immanuel Wallerstein
Comentário nº 315, 15 de Outubro de 2011
Tradução, revista pelo autor, de Luis Leiria para o Esquerda.net
1 A expressão «Entre Cila e Caribde» (Grande Dicionário Enciclopédico da Verbo, 1997) ou «entre Cila e Caríbdis» (Dicionário de Frases Feitas, de Orlando Neves, 1991) é uma forma invulgar que corresponde à tão conhecida «entre a espada e a parede» e que representa a sensação de se estar «num dilema, em perigo iminente, em grande dificuldade». Esta expressão deve-se a uma realidade de grande perigo por que passavam os marinheiros quando passavam no estreito de Messina, pois ao fugirem do Caribde (um turbilhão que aí se formava), iam muitas vezes contra Cila, rochedo pouco distante da costa de Itália. Por isso também existe a expressão «fugir de Cila para cair em Caribde» para exprimir a ideia de «evitar um perigo e cair noutro maior» (Grande Dicionário Enciclopédico, in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa)

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