Da AS-PTA
Por quase 10 anos, os moradores de áreas rurais e periurbanas da
Argentina onde a agricultura industrial vem se expandido têm recorrido a
autoridades políticas e aos tribunais de justiça, bem como protestado diante do
público, por causa dos problemas de saúde que suas comunidades vêm sofrendo em
função da pulverização de agrotóxicos usados nas diferentes culturas agrícolas.
Nesses locais, chama a atenção o aumento do número de casos de câncer,
de nascimento de bebês com malformações e de problemas reprodutivos e hormonais
desde que a pulverização sistemática de agrotóxicos se generalizou. As
reclamações das cidades-pulverizadas têm sido confirmadas por equipes médicas
que atuam nessas regiões, mas as respostas do sistema público de saúde e o
envolvimento das universidades públicas com o problema têm sido escassos e
limitados.
Buscando promover um espaço para a análise acadêmica e a reflexão
científica sobre o estado da saúde em cidades-pulverizadas, bem como ouvir e
apoiar os profissionais de saúde que vêm denunciando estes problemas, a
Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nacional de Córdoba promoveu em
agosto deste ano o Primeiro Encontro Nacional de Médicos em
Cidades-Pulverizadas. Médicos, outras equipes de saúde e pesquisadores de
diferentes disciplinas atuando no país foram chamados a apresentar suas
experiências, dados, propostas e trabalhos científicos. O evento reuniu mais de
160 participantes de dez estados e de seis universidades federais.
O relatório do encontro, apresentando os principais resultados dessas
pesquisas, acaba de ser publicado.
Os relatórios e testemunhos apresentados pelos médicos presentes
confirmam as observações clínicas, atestando uma série de doenças e problemas
de saúde em pessoas expostas à pulverização. Embora as manifestações de
intoxicação aguda (aquela que se manifesta poucas horas após uma exposição
elevada a produtos muito tóxicos) representem a maior parte das queixas dos
pacientes, o que mais alarma os médicos na maioria das cidades-pulverizadas são
duas constatações: primeiro, o número de abortos espontâneos e de nascimento de
bebês malformados é significativamente maior nas cidades-pulverizadas do que na
média da população.
Segundo, nota-se também um aumento na incidência de câncer em crianças
e adultos, além de outras doenças sérias como a Púrpura de Henoch-Schönlein
(inflamação dos vasos sanguíneos), doenças hepáticas e neurológicas. Os médicos
chamaram a atenção para o fato de que, em geral, vêm trabalhando nas mesmas
comunidades por mais de 25 anos, e que as doenças observadas nos últimos anos
são incomuns e estritamente relacionadas à aplicação sistemática de
agrotóxicos.
Um exemplo contundente são os dados apresentados pela Dra. Ana Lía
Otaño, representante do Ministério da Saúde no estado do Chaco. O relatório
trazido por ela realça claramente o aumento dos casos de bebês malformados no
nível estadual, de acordo com os números da principal unidade de saúde pública
do estado, a Unidade Neonatal do Hospital J.C. Perrando, na cidade de
Resistencia (capital do estado), que passaram de 46 em 1997 para 186 em 2008
(um aumento de 19,1/10 mil nascidos vivos para 85,3/10 mil nascidos vivos).
Os números do Hospital de Resistencia convergem com os dados
apresentados pelo Dr. Horacio Lucero, diretor do Laboratório de Biologia Molecular
do Instituto Regional de Medicina da Universidade Nacional do Nordeste, que há
mais de dez anos vem estudando e registrando a relação dos problemas de saúde
acima descritos com a exposição residencial (por vizinhança) aos agrotóxicos no
estado do Chaco. O Dr. Lucero acrescenta que, nos últimos anos, o plantio de
soja por grandes conglomerados agrícolas veio substituindo outras atividades
agrícolas tradicionais na economia regional. Ele apresenta gráficos cruzando o
aumento do plantio de soja no estado com o aumento no número de bebês nascidos
com malformações.
A relação é ainda mais fortalecida quando é apresentado um mapa
mostrando que o número de mortes de bebês causadas por deformações, anomalias
cromossômicas e outros defeitos no nascimento é significativamente maior nas
áreas de produção de soja e na cidade La Leonesa, que estão sujeitas a altos
níveis de pulverização de glifosato e outros agrotóxicos.
Os dados apresentados pela Dra. Otaño também mostram que a incidência
de câncer infantil é significativamente maior em cidades expostas aos
agrotóxicos (como La Leonesa), quando comparada a cidades moderadamente
expostas (como Las Palmas) e a cidades não expostas aos pesticidas (como Puerto
Bermejo). A incidência de câncer infantil em La Leonesa é mais de três vezes
superior que a de Puerto Bermejo.
Os médicos chamam a atenção para o fato de que o aumento do câncer e
malformações congênitas nas áreas mencionadas acompanhou o aumento exponencial
do uso de agrotóxicos desde a introdução das lavouras transgênicas.
Segundo o relatório, em 1990 foram usados 35 milhões de litros de
agrotóxicos. Em 1996, a introdução das sementes transgênicas acelerou o uso de
venenos, levando a um consumo de 98 milhões de litros. Em 2000 foram aplicados
145 milhões de litros. Em 2010 esse número já era de 292 milhões de litros, e
espera-se para 2011 um consumo de mais de 300 milhões de litros de herbicidas,
inseticidas, acaricidas, desfoliantes e outras substâncias tóxicas. O glifosato
sozinho deverá representar 200 milhões de litros nesse conjunto.
O relatório também menciona que o aumento do uso de glifosato
verificado a cada ano deve estar relacionado ao desenvolvimento de resistência
ao veneno pelas plantas invasoras. Os números indicam que em 1996 eram
aplicados menos de 2 litros de glifosato por hectare, enquanto hoje algumas
áreas recebem 10 litros por hectare. Em alguns casos chegam a ser aplicados
quase 20 litros por hectare. E esses agrotóxicos são aplicados extensivamente,
sobre grandes áreas.
Segundo geógrafos da Universidade Nacional de Córdoba, pelo menos 12
milhões de pessoas vivem em cidades rodeadas por lavouras pulverizadas por
venenos. Para os médicos, são 12 milhões de argentinos que estão sendo
diretamente fumigados.
Entre as propostas apresentadas pelos médicos participantes do Encontro
ao final do documento estão a proibição da pulverização aérea de agrotóxicos,
cuja deriva espalha incontroladamente substâncias tóxicas pelo ar, e que as
universidades públicas passem a desenvolver e promover opções agroecológicas de
produção.
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